Na berlinda, bibliotecas se reinventam no Brasil e no mundo

A futura biblioteca de Aarhus, na Dinamarca, será parte de um complexo multiuso e tecnológico

Reduções nas verbas, perda de protagonismo do livro para mídias digitais e, em muitos casos, declínio no número de visitantes. O cenário atual é preocupante para bibliotecas públicas de todo o mundo, mas muitas estão aproveitando o momento para se revitalizar, embarcar em novos formatos e em novas tendências urbanísticas.

O objetivo é atrair antigos e novos visitantes e, em muitos casos, virar um centro de referência sociocultural, em vez de apenas um local de leitura.

Na Dinamarca, a futura biblioteca de Aarhus será parte de um grande complexo urbano, inserido nos planos de revitalização da baía da cidade.

O complexo, a ser concluído em 2015, vai incluir repartições públicas, espaços para shows, cursos e reuniões, áreas para serem alugadas à iniciativa privada e um café com vista para a baía. Móveis modulados permitirão que as salas da biblioteca sejam usadas para diferentes propósitos ao longo dos anos, de acordo com a demanda dos usuários.

“É muito mais do que uma coleção de livros”, diz à BBC Brasil Marie Ostergard, gerente do projeto. “É um local de experiências e serviços. Notamos que precisávamos dar mais espaço para as pessoas fazerem suas próprias atividades ou para se encontrar.”

Manguinhos e Carandiru

Aarhus resume as ambições da nova biblioteca – que incorpora novas mídias, cria espaços multiuso em constante transformação, é parte de um plano urbanístico transformador e almeja fomentar novas pesquisas e ideias.

Mas há exemplos semelhantes em todo o mundo, da Ásia e Oceania à América Latina, inclusive no Brasil.

Aqui, novas tendências inspiraram a construção de bibliotecas como a de Manguinhos, na zona Norte do Rio, para atender um complexo de 16 favelas com um acervo de 27 mil títulos, além de salas para cursos gratuitos, para reuniões comunitárias e para projetos multimídia. Um café e um cineteatro devem ser inaugurados neste semestre.

A biblioteca-parque de Manguinhos é mais do que um espaço de leitura, dizem responsáveis

A iniciativa, repetida em outras áreas do Rio, é parte do projeto biblioteca-parque, copiado de Medellín, na Colômbia.

Na cidade colombiana, áreas carentes receberam grandes bibliotecas que servem para conectar outros espaços públicos e oferecer também cinema, cursos, shows de música.

De volta ao Brasil, exemplo semelhante é visto também na Biblioteca de São Paulo, erguida junto ao Parque da Juventude, na área do antigo presídio do Carandiru (zona Norte).

“É uma retomada da função da biblioteca, antes vista como um lugar muito elitizado ou como um mero depósito sucateado de livros”, opina à BBC Brasil Adriana Ferrari, coordenadora da unidade de bibliotecas da Secretaria da Cultura paulista.

Acervo e futuro

Mudar a forma de se relacionar com o público significa também mudar o acervo, incorporando DVDs, games e, é claro, e-books e leitores digitais, como o Kindle.

Para aumentar o apelo ao público, em especial o mais jovem, as bibliotecas também têm ampliado seu acervo de best-sellers, indo além dos livros clássicos – algo que pode incomodar os mais ortodoxos.

Para Ferrari, porém, oferecer best-sellers e uma agenda cultural intensa é essencial nas novas bibliotecas. “Tem que ter novidade todo dia e aproveitar as ondas”, diz ela.

Isso inclui promover os livros da série Crepúsculo, por exemplo, “sem fazer juízo de valor” sobre a qualidade da obra. “Aos poucos, a qualificação desse leitor vai acontecendo.”

Na opinião de Antonio Miranda, professor da Universidade de Brasília e consultor na criação de bibliotecas, o futuro reserva três tipos de modelos para as bibliotecas: a patrimonial, com acervo sobretudo histórico e clássico; a híbrida, que mescla o acervo antigo ao de novas mídias; e a sem livros – totalmente digitalizada e focada, por exemplo, no ensino à distância.

EUA

Erguida em área carente, biblioteca de Medellín inspirou modelo usado no Brasil

Nos EUA, tem aumentado o número de bibliotecas que oferecem mais best-sellers e criam ambientes semelhantes ao de livrarias, com cafés, vending machines, aluguel de salas para reuniões e espaços que não exigem silêncio dos visitantes.

Reportagem do New York Times relata que muitas bibliotecas estão preenchendo o vazio deixado pelo fechamento de livrarias no país.

Apesar disso, trata-se de um momento de crise para o setor. Relatório da Associação de Bibliotecas da América (ALA, na sigla em inglês) cita cortes “draconianos” nas verbas estatais para as bibliotecas e disputas com editoras envolvendo o empréstimo de e-books.

Sem dinheiro, a Filadélfia, por exemplo, suspendeu uma grande reforma que planejava para sua biblioteca pública e quer buscar apoio privado, bem como cobrar usuários pela oferta de “serviços premium”.

Mas seu plano contempla também as novas tendências bibliotecárias: aumentar a presença virtual, adaptar seu espaço a novas demandas e engajar visitantes com projetos de alfabetização e empreendedorismo.

“A biblioteca do futuro pode ser um centro de criatividade, para a criação de aplicativos virtuais e promoção de mudanças na comunidade”, afirma à BBC Brasil Maureen Sullivan, presidente da ALA.

“O novo conceito é o de ser um espaço de produção de conhecimento e cultura fora do ambiente acadêmico”, opina Vera Saboya, superintendente de leitura do Estado do Rio, responsável pela biblioteca de Manguinhos.

No Brasil, bibliotecas inovadoras convivem com quadro de descaso

Nova, a Biblioteca de São Paulo fica no local do antigo presídio do Carandiru

No térreo da Biblioteca de São Paulo, ouve-se o burburinho de crianças brincando nos computadores, jogando jogos de tabuleiros ou circulando entre as estantes de livros infantojuvenis até se acomodarem em algum dos pufes com as obras que escolheram.

No andar de cima, adultos leem livros de papel ou em Kindles, teclam em seus laptops ou assistem a DVDs nos computadores comunitários.

Nos arredores, há uma lanchonete, um grande parque, uma escola técnica e a estação de metrô do Carandiru, lembrando os visitantes que ali funcionava antes o famigerado presídio paulistano.

A Biblioteca de São Paulo, inaugurada em 2010 na zona Norte da cidade, é um dos exemplos de bibliotecas brasileiras que acompanham novas tendências internacionais, de criar espaços de convivência modernos – em vez de apenas espaços de leitura.

Outro exemplo vem das bibliotecas-parque no Rio de Janeiro, como a de Manguinhos, montada em um antigo armazém da zona Norte, para servir 16 comunidades carentes com acervo, espaços culturais, sala de reunião, laboratórios e cursos.

“O modelo oferece vários serviços de uma vez só, como literatura, artes, teatro e cinema”, diz à BBC Brasil Vera Saboya, superintendente de leitura do Estado do Rio, destacando que a biblioteca-parque não é um “projeto social” e vai ser expandida para bairros de classe média.

“Mas há uma pequena revolução (ao redor dela) nos lugares mais pobres. Quando vejo crianças de 5 anos entrando no lugar, imagino que daqui a dez anos ela terá passado por experiências muito determinantes em sua vida cultural dentro da biblioteca”, agrega.

A biblioteca de Manguinhos recebe cerca de 120 mil pessoas ao ano. A Mario de Andrade, em São Paulo, viu seu público mais do que dobrar (para 217,8 mil) desde a reforma e reinauguração, em 2011. Suas atrações são, além do acervo e da coleção circulante, a programação cultural mensal (incluindo ciclos de leitura e escrita, de história da arte e do conto latino-americano).

Déficit de bibliotecas

Mas iniciativas inovadoras, reformas e modernização do acervo convivem, no Brasil, com déficit de bibliotecas nas escolas, baixos índices gerais de leituras, exemplos de descaso e queixas do setor.

O Censo Escolar 2011 (o mais recente), do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais), aponta que, de 146 mil escolas do ensino fundamental, apenas 52 mil têm bibliotecas (cerca de 36%). No ensino fundamental, de 26,9 mil escolas, 19,6 mil têm bibliotecas (73%).

Levantamento divulgado nesta semana pelo movimento Todos Pela Educação, a partir do Censo, afirma que o Brasil precisaria construir 128.020 bibliotecas escolares até 2020 para cumprir a lei 12.244/2010, que dispõe sobre a universalização de bibliotecas.

“Para isso, seria necessária a construção de 39 unidades por dia (34 na rede de ensino pública e 4 na rede privada)”, diz comunicado do movimento.

Entre as bibliotecas públicas em funcionamento, enquanto as citadas no início desta reportagem viram seu público crescer, outras permanecem às moscas grande parte do tempo.

Pesquisa de 2011 do Instituto Pró-Livro e do Ibope aponta que em média, os brasileiros leram 4 livros no ano, incluindo as obras indicadas aos estudantes pelas escolas (em 2007, quando a pesquisa tinha outra metodologia, essa média era de 4,7 livros lidos por ano).

Para efeito comparativo, pesquisa de 2012 do centro Pew, nos EUA, diz que um americano médio de 16 anos ou mais leu 17 livros nos 12 meses anteriores ao estudo. (O número é puxado para cima sobretudo pelos leitores de 65 anos ou mais, que leem em média 23 livros/ano).

Desinteresse?

Seriam os números uma evidência do desinteresse do brasileiro pelo livro?

Adriana Ferrari, coordenadora da unidade de bibliotecas da Secretaria da Cultura paulista, discorda. “Não acho que há desinteresse. Acho que o brasileiro não conhece o livro. Que vivência e que cultura temos de biblioteca? Nenhuma”, opina.

Biblioteca de Manguinhos engloba atividades socio-culturais

“Na Biblioteca de São Paulo, recebemos 30 mil visitantes por mês, pessoas que têm algum relacionamento com o livro. Mas no Brasil, montam-se três estantes e chamam de biblioteca. É preciso qualificar as bibliotecas para que as futuras gerações estejam expostas (ao livro).”

Para Antonio Miranda, professor da Universidade de Brasília e consultor para bibliotecas, “começamos tarde e estamos muito atrasados em implementar bibliotecas no país”.

Há avanços, como o Plano Nacional do Livro e da Leitura, programa do Ministério da Cultura que prevê investimentos de R$ 373 milhões em acesso e fomento à leitura e incentivos à cadeia criativa e produtiva do livro.

Mas gerou polêmica o fato de o programa ser centralizado pela Fundação Biblioteca Nacional, instituição que enfrenta problemas. Seus funcionários entraram em greve neste mês de janeiro alegando más condições de trabalho, já que o prédio da instituição enfrentou vazamentos, curto-circuitos e foi alvo de críticas pelos cuidados com o acervo histórico.

Algumas bibliotecas consultadas pela BBC Brasil se queixaram da atuação da FNB e de favorecimento à cadeia produtiva do livro em detrimento das bibliotecas.

A FBN afirma, porém, que o eixo de democratização do acesso à leitura – que engloba, entre outros itens, a implementação de mais de 400 bibliotecas de diferentes tipos e a revitalização de outras 434 – é o que terá a maior parte dos recursos do Plano Nacional do Livro (R$ 254,6 milhões, do total de R$ 373 milhões).

Segundo a assessoria da FBN, também foram firmados em 2012 sete convênios, de um total de R$ 1,35 milhão, para modernizar 82 bibliotecas públicas em sete Estados (São Paulo, Mato Grosso, Pernambuco, Minas Gerais, Ceará, Mato Grosso do Sul e Distrito Federal; só em Pernambuco o valor ainda não foi pago).

Empréstimo de livros digitais opõe bibliotecas e editoras

Bibliotecas oferecem leitores digitais (como o acima) e download de livros, mas enfrentam resistência de editoras

Em meio à tendência de revitalização de bibliotecas e sua adequação às novas demandas dos leitores, muitas passaram a adquirir dispositivos (como Kindle) e livros digitais (e-books).

Na Biblioteca de São Paulo (zona Norte da cidade), por exemplo, Kindles estão disponíveis para os usuários, mas só podem ser usados dentro da própria biblioteca.

Nos EUA e em países da Europa e da Oceania, já existem empresas como a Public Library Online, que prestam serviço a bibliotecas, disponibilizando acervo digital para os usuários destas.

Com isso, usuários das bibliotecas que adquirem o serviço podem emprestar livros digitais pela internet, baixando-os para lê-los em seus próprios dispositivos eletrônicos.

Nesse modelo, o livro só pode ser baixado por um aparelho de cada vez e, passado o prazo de validade do aluguel, o arquivo se fecha.

Ainda assim, a questão envolve uma polêmica a respeito de direitos autorais das obras emprestadas online e coloca bibliotecas e editoras de livros em campos opostos nos EUA.

Em seu relatório mais recente, a Associação de Bibliotecas da América (ALA, na sigla em inglês) diz que “o crescimento dos e-books estimulou a demanda, mas as bibliotecas têm acesso limitado a eles por causa de restrições das editoras”.

Limitações

O relatório diz que grandes editoras, como Macmillan, Simon and Schuster e Hachette, têm se recusado a fornecer livros digitais às bibliotecas.

A editora Harper Collins, por sua vez, limita a 26 o número de vezes que um livro digital pode ser emprestado (ou baixado) pela biblioteca que o adquirir. E a editora Random House aumentou o preço dos e-books vendidos às bibliotecas, também segundo o relatório.

“Em um momento de duras restrições orçamentárias, aumentos nos preços impedem na prática o acesso de muitas bibliotecas (ao e-book)”, diz o texto.

As editoras, por sua vez, dizem estar defendendo os direitos dos autores e argumentam que os limites de acesso levam em conta a vida útil que um livro em papel teria.

Maureen Sullivan, presidente da ALA, disse à BBC Brasil que há conversas com as editoras para chegar a um acordo e que algumas bibliotecas estão testando modelos alternativos.

Um exemplo ocorre no condado de Douglas, no Estado americano do Colorado, onde as bibliotecas firmaram contrato diretamente com as editoras, evitando as distribuidoras de livros e passando a ser donas dos arquivos dos e-books.

Segundo Sullivan, o setor bibliotecário está disposto a aceitar limites de downloads como os impostos pela Harper Collins, “desde que o preço seja razoável”.

No Brasil, onde o acervo nacional em e-books é menor, ainda não há portais como a Public Library Online provendo serviço de empréstimo às bibliotecas nem conversas avançadas entre o setor e as editoras, segundo Adriana Ferrari, coordenadora da unidade de bibliotecas da Secretaria da Cultura paulista.

http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2013/01/130122_bibliotecas_1_tendencias_pai.shtml